lunes, 15 de octubre de 2018

La tradición imaginaria de la voz divina en la Demanda del Santo Grial : salvación y revelación



A t radição i maginária da voz divina em A D emanda do Santo Graal : 
salvação e revelação 

La tradición imaginaria de la voz divina en la Demanda del Santo Grial : salvación y revelación 

The Imaginary Tradition of the Divine Voice in The Quest for the Holy Gra il : Salvation and Revelation 

Alessandra Fabrícia Conde da SILVA, Pedro Carlos Louzada FONSECA 



Uma voz sem corpo é o que se houve muitas vezes em narrativas míticas como as do ciclo do Graal. Joseph Campbell (1904-1987) comenta sobre um dos “motivos mitológicos típicos” em referência à presença tradicional de uma voz salvadora a auxiliar o herói em sua trajetória (1990, p. 151). A voz salvadora se converte em A demanda do Santo Graal, tradução portuguesa do século XV de um texto francês do século XIII, de forma não inteiramente simples, mas de significativa complexidade. É uma voz sem corpo que desvela ao rei Tolheito, “tolhido, privado de movimento, paralisado” (A demanda do Santo Graal, 1995, p. 424, 571)3, os mistérios que assombram os seus (des)ditosos cavaleiros.



A ausência do corpo, como pode ser verificado nas narrativas mitológicas, pode aterrorizar ou fascinar. Paul Zumthor (1915-1995) comenta sobre o “paradoxo da voz” (1997, p. 14). Ela é mais que um fenômeno sonoro, uma vez que está ligada representativamente à ideia de um corpo e dele permite que se capte traços de identidade. Toda voz emana de um corpo: voz e corpo fazem parte de um jogo performático (ZUMTHOR, 1993, p. 241).



Nessa perspectiva representacional, vê-se que a relação entre voz e corpo, em algumas narrativas do Graal, estreita laços de certa forma simbólicos em relação a figuras do imaginário, principalmente quando ligadas à manifestação da Voz Divina e a sua ligação com as personagens que se tornam atores vocais da sua vontade.4





3 Daqui em diante será usada a abreviatura DSG, seguida do número da página, para indicar a edição de Irene Freire Nunes de A demanda do Santo Graal (Lisboa: Imprensa Nacional/Cada da Moeda, 1995), utilizada para referência a passagens da obra. 4 Eles são antes de tudo uma presença e que “...pela boca, pela garganta de todos esses homens (muito mais raramente, sem dúvida, pelas dessas mulheres) pronunciava-se uma palavra necessária à manutenção do laço social, sustentando e nutrindo o imaginário, divulgando e confirmando os mitos, revestida nisso de uma autoridade particular, embora não claramente distinta daquela que assume o discurso do juiz, do pregador, do sábio (ZUMTHOR, 1993, p. 67).


A personagem que ecoa a voz de Deus carrega as marcas pias da autoridade e do poderio divinos. O corpo humano padece e é alquebrado e, em contrapartida, a voz ouvida revela a grandiosidade da mensagem da glória celestial. Nesse sentido, a relação é antitética: a dor e o sofrimento estão presentes nas histórias que têm como protagonistas os santos e os eremitas.



No caso feminino, esperava-se que as penitências aos pecados deveriam apresentar maior energia, pois a luxúria da mulher nunca deixou de ser “considerada ainda mais fétida e asfixiante do que a masculina” (PILOSU, 1995, p. 36, 54). Se cabia à mulher maior sofrimento, caberia também maior glória? Como a voz divina lidou com personagens como a donzela irmã de Persival e o Rei Pescador?



Alguns verbos que descrevem a trajetória da personagem apresentam um sentido duplo, ativo-passivo, o que faz com que na simbólica cristã o objeto tenha dois aspectos.5 Essa complexa condição ativo-passivo está presente em algumas personagens das histórias do Graal que ecoam a Voz Divina. Na verdade, as vozes que delas ressoam apresentam uma peculiaridade, fazendo com que as próprias personagens se mostrem em contradição em relação à manifestação da Voz Divina.



No universo de A demanda, a Voz Divina se manifesta de forma distinta quando o corpo que a repercute é feminino ou masculino. A voz fala com quem quer e se revela como quer discriminadamente. E essa não é uma voz qualquer. É salvadora, antes de tudo. Mas é também reveladora. Por vezes pode ser misteriosa, inebriante, fascinante ou terrífica.



Mas não é somente o som da Voz Divina que logra distinção em A demanda. Para além da presença das “letras”, reveladoras de feitos bons e maus – como pode ser visto, por ilustração, no episódio do cavaleiro assassino que caiu da janela, segurando uma carta que divisava a sua história (DSG, p. 41), e na narrativa da morte da donzela irmã de Persival, cujos feitos grandiosos foram descritos numa carta (DSG, p. 329) –, 5 Cristo é ao mesmo o grande Pescador e o peixe. É no duplo sentido ativo-passivo do verbo que é preciso procurar marcas do mecanismo semântico que ordena quer a dupla negação, quer a inversão do valor. Deste sincretismo do ativo e do passivo pode-se induzir mais uma vez que o sentido do verbo importa mais para a representação que a atribuição da ação a este ou àquele sujeito. A diferenciação gramatical dos dois modos ativo e passivo constitui uma espécie de integração gramatical da denegação: sofrer uma ação é, certamente, diferente de fazê-la, mas é ainda, de algum modo, participar nela. Para o imaginário fascinado pelo gesto indicado pelo verbo, o sujeito e o complemento direto podem inverter os papéis: é assim que o engolidor se torna engolido (Durand, 1997, p. 208).


há o calar imperativo da voz, ação de uma força divina. Esse recurso retórico pode ser visto nos episódios da “seeda perigosa”, em que aconteceu uma grande maravilha e não houve no paço quem não perdesse a voz (DSG, p. 29)] e da aparição do Graal, em que “maravilharom-se ende muito desto que aveo e nom houve i tal que pudesse falar por ũa gram peça, ante siam calados e catavam-se ũũs aos outros” (DSG, p. 35).



A ação divina que faz calar a voz dos cavaleiros, por “graça do Espírito Santo” (DSG, p. 35), tem o propósito de destacar o quadro performático em que o escolhido e o Santo Vaso surgem em Camelot. A paralisia da fala acarreta, inicialmente, a paralisia do corpo – “pero nom houve i tal que saísse da seeda enquanto esto durou” (DSG, p. 35) –, ou o seu próprio prazer, em outro momento, “E per u passava, logo todalas mesas eram compridas de tal manjar qual em seu coraçom desejava cada ũũ” (DSG, p. 36). Mas após todas essas manifestações sobrenaturais, os cavaleiros “falarom i muito” (DSG, p. 30, 36).



A passividade dos cavaleiros tem como sobreposição a ação e a presença poderosas de uma personagem sem corpo e que, por isso mesmo, sobredetermina o outro, atribuindo-lhe uma voz, um discurso a ser repercutido, seja o velho que somente ouve uma voz, seja a donzela irmã de Persival, encarregada de instruir os cavaleiros.



Há de certo uma tradição da voz em A demanda. Ela pode ser benigna ou maligna, como no episódio de ardor antijudaico sobre a “aventura do mosteiro” e da voz misteriosa e aterrorizante “que todo homem que a ouvia perdia o sem e a força dos braços e do corpo e de todolos membros” (DSG, p. 59-60).



Conquanto voz benigna, ela é ouvida por Esclabor, o Árabe, convertido ao cristianismo (DSG, p. 102-103): voz profética e de conversão. Há, ainda, enquanto voz benigna, as muitas vozes de louvor a Cristo, que encantam Elaim, na narrativa da mulher da Capela (DSG, p. 116).



Voz de repreensão pode ser ouvida por Estor e Galvam na capela, a respeito das condutas pessoais na trajetória pelo Graal (DSG, p. 121), ou por Boorz, para que não ferisse a seu irmão Lionel (DSG, p. 144).



Mas são os três cavaleiros do Graal, Boorz, Persival e Galaaz, os que mais têm contato com uma “santa voz” (DSG, p. 310) instruidora. Disse uma voz ao cavaleiro da linhagem do rei Bam: “Boorz, nom tenhas mais companha a teu irmão, mas vai-te dereitamente contra o mar, e nom te detenhas nenhur ca Persival te i atende” (DSG,


p. 144). Persival, por sua vez, recebeu de uma voz a mesma instrução de seguir rumo ao mar: “Entra enesta nave e vai-te u te ela levar e nom te espantes de rem que vejas e Deus te guiará u quer que vas; e de tanto ti aveirá bem que acharás todos os companheiros do mundo que mais amas: Boorz e Galaaz” (DSG, p. 203).



No episódio do cervo branco, a voz ouvida pelos três cavaleiros escolhidos atordoa, leva-os ao chão: “Quando eles esta voz ouviram caerom em terra estorgidos, ca a voz foi tam grande que lhes semelhou que toda a capela caera e que a voz fora ouvida per todo o mundo” (DSG, p. 324). De igual modo, há uma relação entre a manifestação da voz e outros fenômenos sobrenaturais.



Na passagem da morte da irmã de Persival, ouve-se uma voz didática que anuncia castigo para reparar assassinatos: “Esta vingança é do sangue das boas donzelas que filharom em aqueste castelo por a terreal saúde de ũa desleal pecador, ca muito é a vingança de Nosso Senhor fermosa e maravilhosa e muito é fol quem contra el vai nem por morte nem por vida” (DSG, p. 331).



Lancelot, desejoso de ver o Santo Vaso, é desencorajado por uma voz para que não entre na sala em que está depositado o Graal: “Lancelot, nom entres dentro ca ti nom é outorgado” (DSG, p. 401). Mas são Galaaz e o rei o Pescador, também chamado de o rei paralítico os que têm maior contato com as manifestações da Santa Voz, representação da divindade. Inicialmente, Galaaz é conduzido pela voz a ir ao mar: “Galaaz, leva-te toste e filha tas armas e cavalga e vai-te ao mar e acharás ũa aventura com que te aprazerá muito” (DSG, p. 383). Em outro momento, é instruído a curar o rei Peleam: “Galaaz, leva suso e filha aquele bacio de sô aquela lança e vai-te a rei Peleam e entorna-lho sobolas chagas ca assi há-de guarecer per ta viinda” (DSG, p. 434). Próximo à morte, a Santa Voz lhe diz: “Galaaz, Nosso Senhor fará ta vontade desto que lhi pedes ca aquela hora que tu pidires ta morte havê-la-ás e acharás vida de alma e ledice perdurável” (DSG, p. 452). E, por fim, Galaaz e os dois companheiros, Boorz e Persival, em Sarraz, ouvem a última instrução da Santa Voz: “Saíde fora desta nave, cavaleiros de Jesu Cristo, e filhade esta távoa de plata assi como está e levade-a aa cidade. Mas em nem ũa guisa nom a ponhades em terra atá que cheguedes ao Paaço Espiritual u Nosso Senhor fez o primeiro bispo, Josefes” (DSG, p. 454).


Embora a narrativa exponha as várias vezes em que a Voz Divina se manifesta aos cavaleiros, sobretudo a Galaaz, é o rei paralítico quem protagoniza maior tempo de conversação e convívio com a voz. Mas quem é o rei paralítico ou “tolheito”, privilegiado de tão importante audição? Há, entretanto, algumas designações a essa mesma pessoa. Ele é também conhecido como o rei Pescador ou como o Rico Pescador (DSG, 1995, p. 380), como o designaram o conde Arnalt a Galaaz e o rei Galegantim a Lancelot, seu avô materno6. A narrativa também lhe atribui o nome de Peleam, bisavô materno de Galaaz (DSG, p.401), pai de rei Peles, também conhecido como o rei Pescador, como se entende na passagem em que Lancelot é cuidado pela mãe de Galaaz (DSG, p. 401-402).



O Rei Pescador é o coração e o centro do mistério total (WESTON, 2005, p. 106-107, 121). Além do que, não se pode deixar de notar a sua relação com Cristo tanto por ouvir diretamente a voz de Deus, quanto por estar ligado à imagem do peixe, símbolo do cristianismo, sendo ele próprio pescador.



No entanto, como disse o conde Arnalt, o rei Pescador precisava de cura. Galaaz curou não a Peles, mas a Peleam, o que leva à consideração de que os dois reis atendiam à designação de rei Pescador. A manutenção da expressão rei Pescador a Peleam parece justificável porque, uma vez em A demanda tendo sido nomeado como rei Pescador e não mais o reino em suas mãos, mas na de seu filho, Peles, a designação pode muito bem ter passado de pai para filho.



Na edição de A demanda do Santo Graal, de Heitor Megale (1989, p. 245) a tradução para o português ainda permite o mesmo entendimento, isto é, Peleam é chamado de Rei Pescador: Galaaz, servo de Jesus Cristo, isto te manda dizer o alto Mestre por mim, que o vingaste hoje bem de seus inimigos, e toda a companhia de anjos está alegre. Ora te convém que vás o mais cedo que puderes à casa do rei Pescador, por receber saúde que tão longamente tem esperado, que deve receber, quando chegares. E ide todos os três, assim que a ventura propiciar.

6 No episódio da morte do conde Arnalt, este diz a Galaaz: “Galaaz, sergente de Jesu Cristo, esto te manda dizer o Alto Mestre per mim que tu o vingaste hoje bem de seus imigos e toda a campanha dos anjos ende é leda. Ora te convém que vaas o mais toste que poderes a casa do Rei Pescador por receber saúde que tam longamente há atendida, que deve a receber quando tu i fores” (DSG, p. 323). O rei Galegantim orienta Lancelot a dirigir-se a casa do Rico Pescador: “Pois ora te vai, disse o homem bõõ, ca nom hás que tardar, ca tu serás cedo em aquela casa u desejas chegar: na casa do Rico Pescador” (DSG, p. 380).


Megale trata o Rei Pelean como Rei Peles, entretanto, a expressão Rei Pescador pode ser conservada em relação a Peleam por ser esta a primeira referência ao bisavô de Galaaz. De qualquer modo, no Perceval, de Chrétien de Troyes (c. 1130-1183), o Rei Pescador e o rei Tolheito ou paralítico são a mesma pessoa. Mas há também outro Rei Paralítico, pai do Rei Pescador. Seu nome é Mordrain, que após a paralisia, “permaneceu no leito, sem o deixar de dia e de noite”. Ambos se alimentavam do que lhes fornecia o Graal (TROYES, 1992, p. 70-71, 242-246). Mordrain só é curado após a morte do Rei Pescador, seu filho, quando Perseval ordena que sejam abertas as portas do aposento real e lá encontra o velho paralítico. Após sagrá-lo rei, Mordrain morre nos braços de Perseval, numa das continuações de Perseval, o texto de Gerbert de Montreuil (séc. XIII).



Em A demanda, as histórias extraordinárias da Besta Ladrador, da Dona da Capela e da Fonte da Guariçon precisavam ser resolvidas. Entretanto, restava saber quem as revelaria. Peleam é citado, previamente, como aquele que desvelaria os três grandes mistérios encontrados pelos cavaleiros na busca pelo Graal:



Esto divisa o conto ali u fala de III maravilhas – a da Bescha Ladrador e da velha dona da capela, aquela que viu Elaim o Branco viver do pam dos ângeos, e a Fonte que era chamada Fonte de Guariçom. A Verdade dessas III cousas divisou-a o rei Tolheito a Galaaz quando foi a Corberic com dom Boorz e com Persival que viram o Santo Graal, o que mortal homem não poderia ver. Ali divisa como estas III maravilhas aveeram e em qual guisa (DSG, p. 424). Para além do comentário do narrador, uma personagem revela duas informações importantes. Primeiramente, Atamas reafirma que o primado do conhecimento do mistério da fonte pertence a Peleam. Logo a seguir, informa que uma mulher lhe deu tal entendimento:



Nom pudi eu achar quem mo disse, mas tanto vos digo que ũa molher mi fez entendente que me a esta fonte adusse, que nengũũ nom podia saber a verdade desto senom pelo Rei Tolheito. Aquel divisaria esta aventura, como aveo, ao bõõ cavaleiro que há a dar cima aas aventuras do reino de Logres (DSG, p. 426).



Após ser curado de forma sobrenatural, envolvendo objetos sagrados como a lança e bacia, tendo estado adoentado e imobilizado, por quatro anos, Peleam conta aos cavaleiros a sua história extraordinária e predita muitas outras vozes: Fora alimentado pelo que lhe dera o Graal e ouvira da Santa Voz o significado das narrativas das três


maravilhas conhecidas pelos cavaleiros.7 Em seguida a algumas aventuras, os cavaleiros encontram-no pela segunda e última vez, não mais no castelo de Corberic, mas em uma ermida, onde Peleam se fizera ermitão e realizava milagres. Aos cavaleiros, Galaaz, Boorz e Persival revela:



Esto vos direi eu bem, disse el. Mentre eu fui na câmara do Santo Vaso soube as maiores maravilhas do reino de Logres, ca a santa voz mo descobria. Mas dês que me parti, tanto eu sei como outro homem. Agora vos divisei a verdade de três coisas que me perguntastes (DSG, p. 452).



Santa Voz revela os mistérios ao rei Tolheito e este tem a missão de contá-las aos cavaleiros. No entanto, mais do que saber o que conversavam, importa entender a presença da Voz Divina em sua relação com o rei paralitico e sua condição de ativopassivo. A voz age sobre o velho, contando-lhe o desconhecido. Sendo voz sem corpo, precisa de alguém que lhe seja o intérprete. O velho, então, é agido, mas, ao mesmo tempo, a voz revela-se impotente, já que precisa de um corpo. Não obstante, reforçando a condição passiva do rei, a narrativa descreve um homem paralitico, à espera do escolhido, que lhe trará a cura.



Por outro lado, após ouvir a voz e ser curado, o velho rei já não é mais descrito em uma condição passiva, mas ativa. De igual forma, Galaaz age sobre o velho curando-o, mas é em passividade que ouve o ancião narrar sobre os três mistérios de A demanda. A presença de mulheres instruindo ou esclarecendo mistérios logra relevância na narrativa. Assim como a mulher desconhecida, mencionada por Atamas, a irmã de Persival assume papel pedagógico e instrutor. A sua voz é diretiva e profética. Mas também assume, antes de tudo, uma condição antitética em relação ao corpo, porque, assim como aconteceu a Peleam, enclausurado e paralítico, por quatro anos, a irmã de Persival, para ouvir a Voz Divina também teve o seu corpo alquebrado até a morte.



Certo é que a heroína do Graal, auxiliadora dos heróis, sobretudo de Galaaz, apresenta em sua trajetória fortes traços de instrução e conhecimento da vontade divina, sendo ela mesma uma figura que representa Cristo, assim como Galaaz. 7 É certo que o mistério da Besta ladrador e da Fonte da Guariçom foram vivenciadas pelos três cavaleiros. E quanto ao mistério da Dona da capela, protagonizado por Elaim, o Branco? No episódio em que todos os cavaleiros se encontram com Boorz, Persival e Galaaz, em Corberic, o texto diz que: “Entom se começarom a preguntar ũũs aos outros por novas da demanda. E eles se disserom o que em sabiam e quem entom i fosse bem podiria ouvir contar muitas novas e muitas fremosas maravilhas e muitas fremosas aventuras” (DSG, p. 433).


A morte da irmã de Persival constitui uma nova figura da Paixão de Cristo (MIRANDA, 1998, p. 78). No entanto, não é revelado como a donzela conseguiu as informações. Mas no episódio da sua morte, debilitada, após a doação de seu sangue para o recobrar da saúde de uma rainha má, a donzela recebe da divindade informações proféticas que auxiliarão os heróis do Graal. Não é o dom de profecias, todavia, o único papel comunicacional que a irmã de Persival desempenha. Ela, inicialmente, assume a missão de conduzir os cavaleiros pelas aventuras que legitimarão Galaaz como cavaleiro do Graal, como no episódio da barca de Salomão ou da estranha cinta, principalmente, quando os cavaleiros, incluindo Boorz e Persival, não sabiam como agir. Galaaz atesta a condição diretiva da donzela, o que causa risos entre os talvez descrentes Boorz e Persival, que desconhece tratar-se de sua irmã: “‘Certas, disse Galaaz, a meu ciente nom viera eu aqui se ela nom fosse. Onde vos posso dizer verdadeiramente que mais viim per ela ca per niũũ’. E eles se rirom delo e começarom a contar de suas aventuras” (DSG, p. 310-311).



Em outra instância, a donzela indica-lhes como proceder nas questões referentes à entrada na nave maravilhosa, à espada de David e à bainha (DSG, p. 311-312). E, por fim, anuncia aos cavaleiros, com conhecimentos proféticos, o seu próprio fim e o dos cavaleiros Galaaz e Persival:



Irmão Persival, eu moiro por saúde desta dona. Rogo-vos que me nom soterredes, mas tanto que for morta levade-me ao porto do mar que daqui achardes mais perto e metede-me em ũa barqueta e leixade-me ir assi como a ventura me queira guiar. E eu vos digo que já tam toste nom iredes aa cidade de Sarraz, u havedes de ir depós o Santo Graal, que me vós a pee da torre nom achedes. Entom fazede tanto por mim e por vossa honra: fazedeme soterrar no paaço Celestial. E sabede porque vo-lo rogo? Porque dom Galaaz há i de jazer soterrado e vós, irmão, outrossi (DSG, p. 328).



A donzela ainda informa a Galaaz sobre a necessidade de este ir ter com Artur, em Camalot: “ca bem sabede que rei Artur há mui mester de tornardes a ele” (DSG, p. 329). É a voz profética da tecelã do Graal, que doou os seus próprios cabelos para confeccionar a bainha da espada de Galaaz (DSG, p. 314). Abnegada à causa cristã, a irmã de Persival doa mais que os belos cabelos, mas o sangue, que lhe custa a vida, para atender ao nefasto costume do castelo de uma mulher má, a rainha leprosa (DSG, p. 328). A voz profética ou diretiva da irmã de Persival ecoa a tradição de mulheres que detinham a “palavra de revelação” (RÉGNIER-BOHLER, 1990, p. 566), conforme pode ser visto na literatura espiritual feminina, a exemplo de Hildegarda de Bingen no século XII.


Assim como o conde Arnalt, a irmã de Persival profetiza e sua palavra tem tanto peso ou mais que a de um homem. Ela também fala com o seu corpo, tornando-a eleita e única para a uma missão mortal. O corpo da donzela, conforme pode ser visto no episódio da sua morte, é um “instrumento de comunicação privilegiado” e que “fala ao mesmo nível do que a voz” (RÉGNIER-BOHLER, 1990, p. 568).



Assim, cada parte do corpo contrito e abnegado é um símbolo de devoção: “por si só ele é linguagem, código verbal que entra numa nova sintaxe em que o corpo e os sintomas afectivos se fundem com as palavras; em que, por fim, a palavra comunicada pela visionária e pela profetiza se pode fazer ouvir” (RÉGNIER-BOHLER, 1990, p. 568). Quer fiando a bainha da espada de Galaaz, vertendo o sangue para a cura de mulher má ou empregando a palavra diretiva ou profética, a irmã de Persival recebeu a incumbência de salvar a missão dos heróis do Graal.



Curiosamente, já não se tratava do palavreado incessante e maligno que os patristas delimitaram à mulher sobredeterminando-a como ser inferior e nefasto (BLOCH, 1995, p. 195). Há, certamente, uma sobredeterminação, mas esta busca rivalizar com o discurso masculino, não para desfazê-lo, mas, satisfazendo à causa cristã, ampara e acolhe a palavra masculinista. Como quer que seja, a voz salvadora, muitas vezes, mostra-se, em A demanda, como representação feminina.



A salvação para o mistério que envolve o herói do Graal, no episódio da barca de Salomão, é veiculada pela voz feminina que é também reveladora. O conhecimento salva a jornada do herói. A voz reveladora, de igual modo, não deixa de ser uma voz salvadora, uma vez que é a Santa Voz quem desvela, para o Rei Pescador, os três mistérios que os cavaleiros do Graal encontram em sua trajetória.



A narrativa informa claramente que a Santa Voz falou com o rei Tolheito ou com os três cavaleiros do Graal ou ainda com Lancelot, mas não menciona a comunicação direta com a irmã de Persival, embora se reconheça a sabedoria e o conhecimento divinos da donzela, o que a torna digna de ser enterrada entre os heróis do Graal: “fezedeme soterrar no paaço Celestial. E sabedes porque vo-lo rogo? Porque dom Galaaz há de i jazer soterrado e vós, irmão, outrossi” (DSG, p. 328). O seu dom de profecia lhe assegurou distinção em vida e glória após a morte, como também ocorreu a Galaaz, ainda que dores da donzela tenham sido maximizadas.


Fontes



A DEMANDA do Santo Graal . (ed. Irene Freire Nunes). Lisboa: Imprensa Nacional/Cada da Moeda, 1995. A DEMANDA do Santo Graal . (ed. Heitor Megale). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1989. TROYES, Chrétien de. Perceval ou o Romance do Graal. (trad. Rosemary Costhek Abilio). São Paulo: Martins Fontes, 1992.



Bibliografia



BLOCH, R. Howard. Misoginia medieval e a invenção do amor romântico ocidental. Trad. Claudia Moraes. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. CAMPBELL, Joseph; MOYERS, Bill. O poder do mito. Trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas Athena, 1990. DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arqueologia geral. Trad.Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 1997. MIRANDA, José Carlos Ribeiro. Galaaz e a ideologia da linhagem. Porto: Granito Editores e Livreiros, 1998. PILOSU, Mario. A mulher, a luxúria e a Igreja na Idade Média. Trad. Maria Dolores Figueira. Lisboa: Editorial Estampa, 1995. RÉGNIER-BOHLER, Danielle. Vozes literárias, vozes míticas. In: KLAPISCH-ZUBER, Christiane (dir.). História das mulheres no Ocidente: a Idade Média. Trad. Ana Losa Ramalho et al. Porto: Afrontamento, 1990. v. II. p. 517-591. WESTON, Jessie L. Os segredos do Santo Graal: um estudo aprofundado das lendas e mistérios. Trad. Ana Lúcia Mantovani Ferreira. São Paulo: Tahyu, 2005. ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. Trad. Amálio Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. __________. Introdução à poesia oral. Trad. Amálio Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira et al. São Paulo: Editora Hucitec, 1997.

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